Era uma quinta-feira qualquer, daquelas em que o silêncio pesa mais que o sono e o relógio parece ter esquecido de correr. O mundo lá fora deslizava morno, com suas urgências pequenas e seus compromissos vencidos. Eu, entre uma notícia mal lida e uma janela mal fechada, decidi abrir uma garrafa.
Ela estava ali fazia meses. Talvez anos, se contarmos o tempo emocional, aquele que não marca calendário, mas que se acumula nos cantos da estante. Uma garrafa de vinho esquecida no fundo do armário, com rótulo desbotado e promessas que ninguém mais lembrava de ter feito. De alguma viagem? Um presente? Um erro de escolha? Ela não dizia.
Mas naquela noite, ela decidiu falar.
Não literalmente, claro. Nenhuma garrafa tem voz, mas algumas têm memória. E essa, ao ser aberta, pareceu liberar não apenas o aroma do vinho velho, mas lembranças fermentadas que eu nem sabia que moravam em mim.
O primeiro gole veio tímido, como quem chega atrasado numa conversa. O segundo, mais íntimo, puxou da minha memória uma varanda de azulejos portugueses, uma música que vinha da rua, e um beijo roubado entre risos despretensiosos. Eu nunca estive em Portugal, mas naquela quinta-feira, estive.
A garrafa virou personagem. Sentada à minha frente, vestida de vidro e nostalgia, ela foi me contando histórias que talvez nunca tivessem acontecido, ou que, de tão vivas, não precisavam mais da chancela do real. Falou de amores esquecidos, de festas que acabaram cedo demais, de amizades engarrafadas pelo tempo. Em cada gole, um cenário. Em cada trago, um reencontro.
E assim, a madrugada se alongou em silêncio cúmplice. Eu e ela, dois desconhecidos íntimos, dividindo o mesmo esquecimento. A garrafa ria, eu chorava. Ou talvez fosse o contrário. Pouco importa. O vinho acabou e, com ele, a personagem também. Restou o vidro vazio, um copo manchado e a estranha sensação de que alguma coisa tinha sido dita, mesmo que nada tivesse sido dito.
No dia seguinte, encontrei a garrafa na pia. Sem voz. Sem alma. Só um objeto qualquer, pronto para o lixo. Mas ainda havia algo ali, talvez um resto de memória evaporando devagar. Porque às vezes, a gente não bebe um vinho. A gente revive.
E quinta-feira, desde então, nunca mais foi um dia qualquer.
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