O cheiro do malte tostado se espalha pela cozinha como um convite. Na panela, a água borbulha enquanto mãos familiares mexem a mistura com paciência. É nesse cenário doméstico e afetivo que muitas cervejas artesanais brasileiras ganham vida. Neste episódio do quadro “Quinta da Garrafa”, mergulhamos na história de quem leva a sério o lema: cerveja boa é aquela feita com alma — e, de preferência, em casa.
Uma das histórias mais inspiradoras do país vem da Gaspar Family Brew, de São Paulo, que nasceu literalmente dentro de casa. Tomás Gaspar conheceu o mundo da cerveja artesanal durante um intercâmbio nos Estados Unidos, se apaixonou pela variedade de estilos e voltou decidido a produzir suas próprias receitas. Sem grana para comprar os equipamentos, ganhou do pai, Marcelo, os utensílios necessários — com uma condição: “Mas você vai me ensinar, hein?”, brincou ele na época.
E ensinou. O que era para ser um hobby virou paixão compartilhada. As primeiras brassagens da Gaspar Family Brew aconteceram na cozinha, com a participação de toda a família. “A gente se reunia em volta da panela, cada um cuidando de uma etapa. Era mais que cerveja, era tempo de qualidade juntos”, contou Tomás em entrevista ao blog Lado Bier.
Cerveja com afeto — e técnica
Produzir cerveja artesanal em casa é um processo trabalhoso. Envolve etapas como moagem do malte, mosturação, fervura com lúpulo, resfriamento, fermentação, envase e maturação. Cada fase exige conhecimento técnico e cuidados sanitários. “Não dá pra errar a limpeza. Já perdemos lote por causa de uma torneira mal lavada”, diz Marcelo, hoje mestre-cervejeiro da própria família.
Com o passar do tempo, a Gaspar Family Brew evoluiu.Participaram de feiras, distribuíram para bares da cidade e, aos poucos, criaram uma marca que une qualidade, criatividade e memória afetiva.
Hoje, eles têm rótulos autorais e mantêm o conceito artesanal mesmo com o crescimento. “A essência continua: cerveja com alma e boas histórias para contar”, resume Tomás.
Um mercado que fermenta devagar — mas com consistência
O Brasil tem mais de 1.700 cervejarias registradas, segundo dados do MAPA, mas a maioria ainda enfrenta obstáculos como impostos altos, distribuição restrita e domínio de grandes conglomerados. O mercado é competitivo, mas há espaço para quem aposta em diferenciação — como cervejas com ingredientes regionais, colaborações criativas e narrativas pessoais, como a da Gaspar Family.
Outros exemplos de sucesso seguem a mesma trilha: a Brassaria Amazônica, de Belém (PA), que utiliza insumos da floresta como cumaru e priprioca e o coletivo Cervejeiras Negras, de Vitória (ES), que une mulheres negras em torno da produção cervejeira com identidade e resistência.
Receita de sucesso: mais que bebida, é história engarrafada
O que move essas iniciativas não é só o produto final, mas o que ele representa: encontros, vínculos, narrativas. A Gaspar Family Brew, por exemplo, batiza seus rótulos com nomes que remetem à convivência familiar, como “Domingueira” (uma pale ale leve para tardes ensolaradas) ou “Conversêra” (uma porter cremosa para aquecer papos longos).
“Cerveja artesanal é isso: quando alguém abre uma garrafa e pergunta quem fez, como fez, por que esse nome... a conversa já começou”, diz Marcelo. “A gente não quer só vender. A gente quer fazer parte da mesa das pessoas", pondera.
E é com esse espírito que a Quinta da Garrafa brinda hoje: às histórias que fermentam dentro das casas e ganham o mundo em forma de goles memoráveis.
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