Na praça da velha Rouen, a névoa parece sussurrar segredos do passado. Entre as pedras irregulares do chão e o cheiro antigo das padarias acesas ao amanhecer, há um eco que resiste ao tempo: o som das chamas que, séculos atrás, engoliram uma menina com armadura e fé. O relógio da catedral marca a passagem dos séculos, mas ainda hoje, o nome de Joana D’Arc paira no ar como uma oração interrompida, um feitiço mal lançado ou uma bandeira em marcha. É difícil dizer. Porque Joana nunca foi apenas uma figura histórica. Ela é um enigma — daqueles que nem a História, com sua lupa de documentos, consegue decifrar por completo.
Nascida em 1412, em Domrémy, uma vila esquecida no mapa da França medieval, Joana era uma camponesa iletrada, filha de lavradores, quando começou a afirmar que ouvia vozes divinas — de santos e anjos — orientando-a a libertar a França da dominação inglesa. O país, naquela época, sangrava sob os escombros da Guerra dos Cem Anos, e a presença de uma jovem que dizia ser enviada por Deus soava, ao mesmo tempo, como milagre e loucura. Tinha só 17 anos quando liderou tropas no cerco de Orléans, vestida com armadura e fé — duas couraças que usava com igual convicção.
Mas seu triunfo não duraria. Capturada pelos borgonheses, aliados dos ingleses, foi entregue à Inquisição, que a julgou não por seus feitos em campo, mas por usar roupas masculinas, afirmar escutar vozes celestes e insistir que cumpria a vontade de Deus. A menina-soldado, que marchou como generala, foi reduzida a herege, feiticeira e possessa. Em 1431, aos 19 anos, foi queimada viva na praça pública de Rouen. Suas últimas palavras foram um clamor: “Jesus!”.
Duzentos anos depois, a Igreja revisou o julgamento. Joana foi absolvida, redimida e, mais tarde, canonizada. Hoje é santa padroeira da França, inspiração para líderes e mártires, personagens e poemas. Mas o mistério permanece: teria sido uma visionária ou uma alucinada? Uma enviada divina ou uma rebelde inspirada? Bruxa, santa ou símbolo nacional? Cada época a reinterpreta à sua maneira — como símbolo feminista, como mártir religiosa, como heroína da pátria.
Joana D’Arc, afinal, pertence a esse seleto grupo de figuras que não cabem em uma única narrativa. Foi queimada como bruxa, lembrada como heroína e canonizada como santa. Talvez porque os grandes enigmas da história não existem para serem resolvidos — mas para continuar incendiando perguntas, como brasas sob as cinzas do tempo.
Comentários