Era 13 de maio de 1888. Os salões do Rio de Janeiro, ainda capital do Império, pulsavam com cochichos abafados e olhares desconfiados. O papel repousava sobre a mesa como se ardesse. A pena tremia nas mãos da princesa regente. Lá fora, não houve festa oficial. Não houve fogos. Os que verdadeiramente esperaram por aquele dia — os negros escravizados — sequer foram convocados à assinatura. Muitos ainda estavam nas senzalas, outros, nos cafezais, colhendo sob a batuta do feitor. A assinatura da Lei Áurea foi breve e seca. Dois parágrafos. Nenhuma previsão de reparação. Nenhuma palavra sobre inclusão. A caneta deslizou sobre o papel, mas o peso da história ainda hoje não foi aliviado.
Por muito tempo, os livros didáticos exaltaram a princesa Isabel como a heroína da liberdade. Mas o tempo, como bom historiador, revelou camadas mais complexas.
“A abolição não foi um ato de benevolência. Foi uma resposta a pressões externas e internas”, afirma a historiadora Angela Alonso, autora de Flores, Votos e Balas. “O movimento abolicionista negro, aliado às fugas em massa, aos quilombos urbanos e à resistência nas fazendas, desestabilizou a economia escravocrata. O Império foi encurralado”, disse.
A pintura de Victor Meirelles que retrata a abolição da escravatura no Brasil coloca a princesa Isabel no centro da cena, em posição de heroína solene, iluminada e reverenciada por figuras negras que a cercam com gratidão. A composição segue o estilo acadêmico e idealizado do século XIX, reforçando o mito da “redentora branca” e apagando deliberadamente os verdadeiros agentes da luta abolicionista — os próprios negros, quilombolas, líderes populares e intelectuais que, por décadas, desafiaram o sistema escravocrata. Ao glorificar a figura da princesa, a obra cumpre uma função política: legitimar a monarquia e perpetuar a narrativa de que a liberdade foi um presente concedido, e não fruto de resistência. Hoje, essa imagem é criticada por estudiosos e movimentos sociais por seu papel na construção de uma memória oficial que distorce os fatos históricos, como destaca a historiadora Lilia Schwarcz: “essa imagem é menos sobre o que aconteceu e mais sobre o que se queria que fosse lembrado.”
De fato, a assinatura da Lei Áurea aconteceu apenas após um longo processo de desgaste do sistema. A Inglaterra pressionava economicamente o Brasil desde o fim do tráfico transatlântico. Os cafeicultores, por sua vez, viam alternativas mais lucrativas na imigração europeia, que crescia em São Paulo. E as revoltas, fugas e sabotagens de escravizados tornavam o sistema cada vez mais insustentável.
“Se dependesse da monarquia, a escravidão teria durado mais. A princesa Isabel assinou porque não havia mais como sustentar o regime”, pontuou Djamila Ribeiro, filósofa e autora de Pequeno Manual Antirracista.
O dia seguinte: o abandono institucional
Historiograficamente, o que se seguiu à abolição foi uma política de esquecimento. Sem qualquer tipo de reparação por parte do Estado ou da monarquia, os cerca de 700 mil ex-escravizados foram lançados à marginalidade. Muitos continuaram a viver nas fazendas, agora como “agregados” ou meeiros, sem salário fixo, apenas trocando trabalho por moradia precária. Outros migraram para as cidades, onde enfrentaram o desemprego, a fome e a repressão policial. Sem acesso à terra, à educação ou ao mercado de trabalho formal, parte dessa população começou a ocupar áreas abandonadas ou desvalorizadas, longe do centro urbano, como morros e encostas — processo que marca o início da formação das periferias brasileiras.
No Rio de Janeiro, por exemplo, os primeiros cortiços e moradias improvisadas nos morros deram origem às favelas, como o Morro da Providência, habitado por ex-soldados negros da Guerra de Canudos. Paralelamente, comunidades remanescentes de quilombos resistiram e se reorganizaram, sobretudo em áreas rurais, mantendo vivas tradições, redes de solidariedade e formas autônomas de existência. Como aponta o historiador Sidney Chalhoub, “a abolição não destruiu o racismo, apenas o deslocou para outras formas de exclusão: a informalidade, a repressão, a miséria urbana.” Em outras palavras, o Brasil do pós-abolição manteve a lógica da casa-grande: liberdade sem igualdade, cidadania sem dignidade.A abolição não previu terra, educação, trabalho ou cidadania. Os ex-escravizados foram lançados à própria sorte, sem nenhuma compensação. “Foi uma abolição inconclusa, incompleta e cruel. O Brasil apenas apagou a escravidão da lei, mas manteve-a nos corpos e nas estruturas sociais”, explicou o sociólogo Jessé Souza.
Quilombolas de várias regiões do país apontam que essa herança ainda se traduz em exclusão, racismo e falta de acesso a direitos básicos. Em entrevista, Maria da Penha, liderança do Quilombo Kalunga (GO), afirma:
“Nos tiraram das correntes, mas nos prenderam na miséria. Até hoje lutamos por terra, saúde, água e respeito. Não queremos favor, queremos justiça.”
O reflexo estrutural: do Brasil Império ao Brasil 2025
Dados do IBGE de 2023 mostram que pessoas negras representam 56% da população brasileira, mas:
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Ocupam apenas 18% dos cargos de liderança;
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Ganham, em média, 40% a menos que pessoas brancas;
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Representam 75% da população carcerária;
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São maioria entre os que vivem em favelas ou áreas de vulnerabilidade.
O racismo estrutural, conceito popularizado por intelectuais como Silvio Almeida, é o que sustenta essas desigualdades. Ele está nas instituições, na polícia, nas escolas, no mercado de trabalho, na política.
E agora? O que buscamos?
“Buscamos um país que conheça sua história e não a romantize. Um país que respeite o povo negro e invista em políticas reais de reparação.”, diz Douglas Belchior, educador da Uneafro Brasil. Segundo ele, isso inclui:
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A efetivação de cotas raciais;
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Reparações econômicas e fundiárias;
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A valorização da história afro-brasileira no currículo escolar;
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Investimentos em territórios quilombolas e políticas públicas específicas.
Abolição é só o começo
A abolição de 1888 precisa ser recontada, não para apagar o que houve, mas para dar luz ao que foi ocultado. A verdadeira liberdade não chegou com uma assinatura. Ela continua sendo construída — nas ruas, nas escolas, nas comunidades, nos quilombos.
Neste 13 de maio, não celebramos um mito. Denunciamos um silêncio. O Brasil ainda precisa ser abolido — das correntes invisíveis que seguem prendendo a população negra em um país que ainda não acertou as contas com seu passado.
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