O sol ainda bocejava por entre os morros de Vila Rica quando Joaquim José da Silva Xavier ajeitou o colete surrado, deu um último gole no café ralo e conferiu os instrumentos de dentista jogados sobre a mesa. O cheiro metálico dos alicates misturava-se ao aroma da terra molhada e da lenha que queimava lentamente no fogão de barro. Mais um dia comum na vida de um alferes sem farda, tropeiro de ideias, dentista por vocação e sonhador por teimosia.
— Hoje tem dente pra arrancar e boato pra ouvir — murmurou, colocando o chapéu.
Caminhava pelas ruas de pedra com passos firmes, o olhar atento aos sinais do tempo — não o das nuvens, mas o das tensões que cresciam em cada esquina. Vila Rica pulsava com o tilintar das moedas da Coroa portuguesa, mas o povo, este mastigava a poeira e a dívida. O ouro já não jorrava como antes, mas o quinto — aquele imposto maldito — continuava a ser cobrado com voracidade. O coração de Tiradentes latejava com mais força que qualquer dor de dente que lhe passassem.
Na taberna, onde os copos se enchiam de cachaça e de revolta, ele encontrava homens que pensavam como ele. Ou quase. Poetas, advogados, mineradores e militares. A maioria endividada. Mas todos com algo em comum: o desejo de mudar o destino de uma colônia espremida entre riqueza e submissão. Não havia ainda um plano concreto, nem estratégia definida, mas havia uma ideia. E às vezes, isso basta para acender uma fogueira.
Quem foi, afinal, esse homem que o Brasil consagrou como mártir da Inconfidência?
A história oficial nos apresenta Tiradentes como o herói da primeira conspiração pela independência do Brasil. Contudo, pesquisas recentes e entrevistas com historiadores como Lúcia Bastos Pereira das Neves, Kenneth Maxwell e Evaldo Cabral de Mello ajudam a tirar as camadas de mito que cobriram a figura de Joaquim José.
Sim, ele existiu. Sim, foi executado brutalmente em 21 de abril de 1792. Mas há muito mais entre as linhas da história do que a versão escolar costuma ensinar.
Mito ou realidade?
- Tiradentes era um herói nacional?
Na época, não. Ele era visto como um agitador, um bode expiatório escolhido pela Coroa para dar o exemplo. Foi só na República, quase cem anos depois, que sua imagem foi moldada para se tornar símbolo da luta contra a monarquia. Sua barba longa, por exemplo, provavelmente não existia. Foi idealizada para lembrar Jesus Cristo, criando um mártir cristão para o panteão republicano. - A Inconfidência era um movimento popular?
Não exatamente. Era, na verdade, um levante da elite mineira — formada por homens letrados e endividados, insatisfeitos com a derrama (cobrança forçada de impostos). Pouco se falava, nesses planos, sobre libertar escravos, por exemplo. A liberdade sonhada era restrita. - Tiradentes era o líder do movimento?
Também não. Ele foi o mais falante, o mais inflamado, talvez o mais idealista. Mas os verdadeiros articuladores, como Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, eram mais influentes. Quando o movimento foi descoberto, muitos desses recuaram ou negaram envolvimento. Tiradentes assumiu a culpa sozinho — por convicção ou abandono. - Foi mesmo enforcado?
Sim. E esquartejado. Seus restos foram expostos publicamente, como advertência. Sua cabeça ficou espetada na praça de Vila Rica. Um espetáculo macabro com a assinatura da justiça colonial portuguesa.
Mas, afinal, o que aconteceu?
O pano de fundo era o auge do descontentamento nas Minas Gerais do século XVIII. O ciclo do ouro entrava em decadência e, com ele, a economia da região. Mesmo com a produção em queda, a Coroa portuguesa insistia em cobrar o quinto — 20% de todo o ouro extraído — e, para garantir o pagamento, instituiu a temida derrama, uma cobrança forçada que saqueava casas, prendia devedores e levava famílias inteiras à ruína.
Era nesse cenário de opressão fiscal e crise econômica que cresciam as ideias iluministas vindas da Europa e da América recém-independente. A liberdade, antes um conceito filosófico, começava a ganhar corpo entre os homens de letras e de influência de Minas. Inspirados pela Revolução Americana e pelos pensadores franceses, um grupo passou a se reunir secretamente para discutir a possibilidade de um levante.
Esse grupo ficou conhecido como os inconfidentes. Planejavam proclamar uma república nas Minas Gerais, eliminar os altos impostos e romper com o domínio português. Pretendiam dar início à revolução no dia da derrama, aproveitando a insatisfação popular. Mas o plano foi delatado antes da ação.
Um dos envolvidos, Joaquim Silvério dos Reis, traindo os companheiros, entregou toda a conspiração em troca do perdão de suas dívidas. A Coroa portuguesa agiu rapidamente. Prendeu os envolvidos, abriu um longo processo inquisitorial e decidiu pela execução de apenas um: Tiradentes, o menos influente entre os conspiradores, mas o mais inflamado — e, portanto, o mais perigoso do ponto de vista simbólico.
Num feriado como hoje, o Brasil lembra Tiradentes, mas raramente mergulha na complexidade de sua vida e de seu tempo. A luta pela independência foi construída aos poucos, com avanços e retrocessos, contradições e silêncios.
Hoje, no mesmo dia em que o mundo acorda em luto com a notícia da morte do Papa Francisco, figura de coragem e humanidade, também é dia de refletir sobre outro homem que, à sua maneira, também desafiou um sistema opressor. Um foi pastor de almas; o outro, arrancador de dentes e semeador de ideias.
Talvez, ao fim, o que unam os dois seja a coragem de dizer “basta” — cada qual à sua época, cada qual ao seu modo.
E talvez, nesse país de memória curta e feriados longos, ainda seja preciso recontar, vez ou outra, as histórias de quem teve coragem de sonhar outro destino para o Brasil. Mesmo que, no início, fosse só mais um dia comum.
— Hoje tem dente pra arrancar e injustiça pra mastigar.
E ele saiu, sem saber que, séculos depois, ainda o chamaríamos de herói.
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